Um ninho e uma casa equivalem-se. Não é por isso que deixa de ser perigoso metaforizar, do humano para o animal ou no sentido contrário. A metáfora simplifica e atrai o sentimentalismo, a némesis do esteta. Deixai então a presunção, ó vós que entrais. Há mais que ver.
A memória faz o ninho como quem faz uma casa. Há um instinto para construir a partir do passado, de erguer sobre bases estáveis. Somos nós que atribuímos ao passado uma ideia de estabilidade que este nunca teve. Há um passado do qual nada sabemos, como naquele provérbio apócrifo que diz, “Na Rússia o passado é sempre imprevisível”.
Constrói-se no entanto uma casa como que por instinto, como fazem algumas aves que escavam no chão um lugar seguro para os seus. Pode também edificar-se por oposição, para reagir ao passado, mas não devemos ocupar-nos com esse aspecto. É mesmo de construir que aqui se vai tratar, a construção como arte de acreditar no futuro.
Pode construir-se por capricho, que bela coisa! Sem preocupação com a posteridade, apenas com a duração natural do material. Usar papel que amarelece ou renda que acaba por desfazer-se é muito semelhante. Tudo dura apenas aquilo que deve durar e também isso é um futuro, embora pareça apenas um acidente à espera de acontecer. Mas a verdade é que no fim tudo se desfaz.
Até um ninho se desfaz, seja por acidente ou agressão, também por falta de utilidade, por se terem esgotado os seus benefícios. Como aves que se vêem forçadas a mudar de território, empurradas pelo clima que muda, há semelhantes ventos que deslocam, de forma natural, aqueles que vieram antes de nós.
Deixam vestígios, que podemos aprender a reproduzir de memória, casas que recordaremos sempre como eram, onde podemos errar de olhos fechados sem temor, palácios da memória dos quais por vezes emergimos com alguma curiosidade digna de se mostrar, talvez um truque, uma habilidade da mão como, por exemplo, dobrar papel.
Apresentam-se os modelos que se copiou e de onde se aprendeu. Presta-se-lhes reverência, são relíquias, como se diz dos dedos mirrados dos santos. São provas de que esse outro mundo realmente existiu. Sustentam-se da memória, como as crenças, e tanta que se guarda nos dedos, de aprender por ver fazer. Os olhos e os dedos são as primeiras ferramentas da memória.
Não é nosso, é património. Ensina-se. Já vi a Xana Sousa fazê-lo. Pega-se assim e dobra-se assado. É uma arte de transmissão, uma comunicação. É, nesse sentido, uma prova de que o futuro deve existir. Para quê guardar seja o que for se o futuro não existir, uma coisa que possa transmitir-se? A própria ideia de transmissão implica a ideia inerente de que algures existirá um receptor.
Esse receptor é o futuro, que não existe ainda mas virá. É religioso apenas na acepção em que volta a ligar, reúne. Cura, claro. É antes de mais uma arte da cura, uma habilidade da mão. Parece magia, como a arte também deve parecer. É, no fundo, um ninho construído a partir de matérias delicadas e ao qual somos todos bem vindos.
Texto de Rodrigo Magalhães, 2024
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